“Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça, Entrou grave e nobre um Corvo dos bons tempos ancestrais. Não fez nenhum cumprimento, não parou nenhum momento, Mas com ar sereno e lento pousou sobre os meus umbrais, Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais. Foi, pousou, e nada mais.”
O Corvo, Edgar Allan Poe (tradução Fernando Pessoa, 1924)

birdguhl

Com a história do gato, acontecera-lhe o mesmo. Pensava ver gatos em tudo o que era canto; não apenas gatos, mas tudo o que se relacionasse com eles.
Agora o birdguhl – tudo o que envolvia pássaros se lhe atravessava à frente.
Uma noite sonhou com aves de uma rara espécie que ela nunca antes vira. Nos ramos folhosos de uma árvore encostada à janela do seu quarto, abriram colares de finas e longas penas brancas. Berraram como gente, exibindo-se para fêmeas inexistentes, num bulício ensurdecedor. Tornaram-se famintos abutres e, um a um, fitaram-na, pacientes, pela vidraça empoada.
Tinha planeado trabalhar o ‘birdguhl’ como um síndrome latente, um desejo adormecido de voar para a vida, recalcado pela mesmice diária, acabando por explodir num incontrolável espasmo da alma, lançando-a para o nada, procurando recuperar tudo. A história culminaria na morte involuntária da personagem, permitindo-lhe, por fim, voar.
Mas, mais uma vez, o planeado se diluíra nos contratempos da vida que acabaram por lhe adormecer o poder criativo.
Um dia, chegou tarde a casa e a lua não estava no céu – chamam-lhe nova, quando assim é. Ao abrir a porta do prédio, reparou estarrecida na forma de uma pomba em franco voo estampada a cinza no vidro - o bico, os olhos e até as penas na ponta das asas tão abertas, viradas ainda para o céu. No chão não estava a pomba, mas, na sombra, um gato lambia as patas satisfeito.

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